segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Jardineiros para Tulipas

No Brasil, a assostência aos portadores de doenças mentais, os cabeças de tulipa, está mudando aos poucos. Mas ainda há muito para ser feito

Por Camila Lara, Kelly Ferreira e Lívia Laranjeira


A Cura da Loucura, quadro do pintor
 flamengo Hieronymus Bosch
 O filósofo Michel Foucault, no livro História da Loucura (Perspectiva, 2004), cita um quadro do pintor flamengo Hieronymus Bosch (1450-1516), chamado A Cura da Loucura (1475-1480), que tem como subtítulo Extração da Pedra da Loucura, para explicar que na Idade Média era comum acreditar que os loucos tinham uma pedra na cabeça que precisava ser removida. O quadro, entretanto, mostra uma tulipa, e não uma pedra, sendo retirada da cabeça de um suposto doente mental. Nos Países Baixos, explica Foucault, os loucos são conhecidos como cabeças de tulipas.


Hoje, o modo de lidar com a loucura está mudando. Mas, pelo menos no Brasil, nem sempre os tratamentos estão disponíveis de forma eficiente para todos aqueles que têm doenças mentais. Os cabeças de tulipa que recebem assistência no país não são a maioria. Alguns conseguem ser atendidos por hospitais psiquiátricos, como é o caso do Complexo Hospitalar do Juquery. Outros, por CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e demais redes extra-hospitalares.

O NOVO JUQUERY
Em 1987, o Movimento da Luta Antimanicomial (MLA) começou a atuar no Brasil com o objetivo de fechar os hospitais psiquiátricos e reinserir os doentes mentais na sociedade. Quatorze anos depois, foi implantada a lei de nº 10.216, que especifica os direitos do doente mental, incentiva a desospitalização e prevê internações apenas quando forem inevitáveis. Diante desse cenário, o que se observa é a melhoria no tratamento do Complexo Hospitalar do Juquery, fundado em 1898 no município de Franco da Rocha, a 45 km da cidade de São Paulo.
 
O Complexo Hospitalar do Juquery atende hoje 312 internos,
 mas já chegou a abrigar 14 mil pessoas em 1968
O Juquery é um dos maiores centros psiquiátricos do Brasil, com aproximadamente 243 quilômetros quadrados destinados ao tratamento de pessoas com distúrbios mentais. Conhecido por constante superlotação e maus tratos, chegou a abrigar mais de 14 mil internos, dentre pacientes e presos políticos, no ano de 1968, segundo dados oficiais do Município de Franco da Rocha.

O arquiteto Paolo Pizzolato, que trabalha no Juquery há dez anos, afirma que quando chegou ao complexo havia cerca de 2.400 pacientes. E desde então ocorreu um intenso processo de catalogação dos pacientes. Muitos foram reencaminhados para os estados de origem e reinseridos em suas famílias. “Foram feitos documentos dessas pessoas, como RG e CPF, as relações familiares e origens foram descobertas e os laços puderam ser reatados”, explica Paolo.

Hoje, o hospital tem 312 pacientes, divididos por alas. A ala de doentes crônicos abriga aqueles que estão internados há anos e não têm família nem outro lugar para morar. Nessa área, nenhum novo paciente pode ser aceito, já que existe intenção de desativá-la. A ala dos pacientes agudos conta com vagas rotativas, sendo 40 para mulheres e 40 para homens; cada um deles permanece, no máximo, dois meses. Atualmente existem algumas exceções na ala rotativa. São pacientes que não têm para onde ir e, por isso, permanecerão internados por mais tempo.

HISTÓRIAS DE VIDA  
Depoimentos das pacientes revelam que, se um dia o Juquery foi conhecido por maus tratos, hoje o tratamento dado aos pacientes mudou. Clara Araújo dos Santos, 43 anos, está internada desde dezembro do ano passado, e é diagnosticada como mental leve.

Segundo o médico Sérgio Tamai, doutor em psiquiatria e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, a classificação dos graus de deficiência mental, diferenciada entre leve, moderada e grave, advém de uma avaliação da capacidade do paciente cuidar de si próprio. A classificação se dá tendo por base as atividades da vida diária separadas em dois tipos: as instrumentais (como usar transporte público e cozinhar) e as básicas (capacidade de se higienizar e se alimentar, por exemplo).

Toda vez que Leonor Basílio, assistente da diretoria e assistente social do Juquery, diz a Clara que ela poderá ter alta, a paciente começa a tremer e ameaça: "se me mandarem para casa, vou me jogar no Tietê". "Meu irmão quer me bater, ele não está bêbado nem nada, e já quebrou a janela da minha casa", conta. No Complexo Hospitalar do Juquery, ela se ocupa fazendo artesanatos. Faz fronhas, almofadas e tapetes de crochê, que servem de presente para os funcionários e também para venda.

Decisões judiciais podem determinar o tratamento de certos doentes, como é o caso de Maria de Lurdes, 26, que já foi internada várias vezes. Enquanto ficou fora do Juquery, ela engravidou e fez de tudo para não ter o filho. "Não queria essa criança. É muita responsabilidade e peso nas costas. Eu batia minha barriga na parede porque queria abortar", confessa. Hoje, sua filha Bruna tem quatro anos, apresenta problemas na visão e nas pernas, e está sob os cuidados da avó materna.

Da última vez que recebeu alta, Lurdes empurrou uma vizinha que segurava um bebê de seis meses. "Voltei em dezembro por causa da agressividade, fiquei fora de mim e briguei", explica. Hoje, ela é obrigada a permanecer no Juquery até que um juiz libere sua alta. Ela recebe muitas visitas do pai, porém costuma agredi-lo verbalmente. Da filha não sente saudade e a chama de "traste" ou se refere como "a menina". Também não tem amizade com nenhum paciente do complexo hospitalar.

Contudo, se relaciona bem com os funcionários, que a avaliam como mental médio. A assistente social conta que é uma prática comum entre as pacientes "adotar" animais que são abandonados no Complexo e vão parar nas proximidades das alas. Lurdes, por exemplo, diz gostar de gatos. Entretanto, quando Leonor pergunta "o que aconteceu com os gatos?", ela responde sem nenhum constrangimento "eu matei!". Como fez isso? Com as próprias mãos. "O gato era grande, mas eu peguei no pescoço dele e matei", explica sem titubear.

Lurdes não tem paciência para artesanato, gosta é de música. Escuta bandas como Calypso e Jota Quest. Segundo Leonor, nos dias em que as pacientes estão mais calmas, os funcionários colocam alguns CDs para elas ouvirem. "Eu gosto quando toca aquela: 'fácil, extremamente fácil para você, e eu e todo mundo cantar junto'", cantarola.

Com blush, pulseiras e vestido florido, Margarida Augusto Justo, que há muito espera uma visita, aparece para conversar com as repórteres de Esquinas. "Estou assim porque sabia que um dia alguém ia vir", diz. Ela tem duas histórias diferentes.

A Margarida criada por ela mesma tem 42 anos, dois filhos, Luana de 5 anos e Heitor de 7 anos, e já foi casada duas vezes. Trabalhou como arrumadeira, passadeira, assistente social, psicóloga e garota propaganda. Atualmente, os filhos estão com tutores. Ela namora Luís Monteiro, que é "calminho e bom pai". Entretanto, também gosta do primo que, segundo a paciente, atuou em uma novela.

De acordo com Leonor, que a acompanha há duas décadas, a realidade é bem diferente. Margarida é esquizofrênica. Era filha adotiva e depois da morte dos pais foi abandonada pela família que lhe restara. Internada há 20 anos no Juquery, a paciente chegou a fugir e passou alguns meses fora do hospital. Quando voltou, por conta própria, a lei havia mudado e ela não podia mais ocupar seu lugar na ala dos pacientes crônicos. Ficou então com uma vaga rotativa, que deve se tornar permanente.

"A vida aqui é muito boa. Eu me arrumo, bebo, como, fumo e durmo. Tá bom, não tá?", indaga Margarida. Ela ainda participa das aulas de artesanato e faz tapetes de crochê. Diverte-se com as festinhas organizadas pelas médicas e no seu aniversário quer bolo e bebidas. Quase todo mês sai às compras acompanhada de um funcionário. Recebe a aposentadoria e vai ao supermercado comprar guloseimas. "Ela tem o controle certo do dinheiro que recebe, sabe exatamente quanto gastou e quanto irá sobrar", relata Leonor. O dinheiro que não é gasto vai para a poupança. Margarida desenvolveu uma relação próxima com as enfermeiras. "Não tem o que elas não façam para agradar a gente", diz a paciente.

OITO CASINHAS
No Juquery há também oito moradias que fazem parte do projeto de Residências Terapêuticas (RT) do SUS (Sistema Único de Saúde), que investe em casas para pacientes sem família, mas que têm condições de sociabilidade. As casas são mantidas pelo município de Franco da Rocha. Mas, segundo o arquiteto Paolo Pizzolato, a cidade não tem condições de receber esse serviço, por isso as residências foram criadas no Juquery. "É uma área separada dos outros pacientes e sem nenhum vínculo hospitalar", explica o arquiteto.

Cidinha é uma das moradoras das casinhas, como são conhecidas as RT. Vive com mais seis mulheres. O Estado fornece alimentação crua para os habitantes das residências, e os próprios moradores preparam a comida. "Na minha casa, eu que cozinho. Só não faço feijão porque tenho medo da panela de pressão", explica Cidinha. Apesar de a paciente ir frequentemente para Atibaia visitar alguns parentes, não quer deixar o Juquery, onde tem muitos amigos e, também, um namorado.

FORA DOS HOSPITAIS
De acordo com Rosa Garcia, membro da diretoria da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), o que aconteceu depois da institucionalização da lei foi uma diminuição dos leitos. De fato, segundo o Ministério da Saúde, nos últimos 20 anos, 70% dos leitos destinados à psiquiatria foram fechados.

"Alguns alegam que grande parte dos que eram hospitalizados se tornavam doentes crônicos e, até certo ponto, isso é verdade", diz Rosa Garcia. A doutora afirma que muitas pessoas se queixam de não haver mais internações. Em certos casos, "a internação para a família se torna mais cômoda", confessa. Isso porque, segundo ela, ter o doente mental em casa é difícil, devido ao fato de ser uma pessoa "improdutiva" que requer cuidados constantes.

Para Sérgio Tamai, psiquiatra e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, hoje, a existência de tratamentos eficazes exclui a necessidade de longas internações. E Guilherme Spadini, psiquiatra do Hospital das Clínicas, complementa: "nos moldes antigos, o paciente esquecia-se da sociedade, da chance de ter uma vida, e ficava internado por muitos anos. Hoje, o hospital psiquiátrico trabalha com internações curtas".

Entretanto, Tamai afirma que o atendimento fora dos hospitais ainda é um problema, pois as políticas brasileiras não cumprem o que a lei prevê. "Tornar o tratamento acessível para as pessoas é a base de tudo", afirma. A questão básica é como colocar os recursos disponíveis para a população. Se não há mais internações longas, pressupõe-se que os doentes mentais terão outro tipo de acompanhamento. Entretanto, nem sempre é isso o que acontece.

A descentralização do modelo de tratamento original, que previa longas internações, propõe tratamentos alternativos como o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), que funciona como uma espécie de ambulatório. O tipo de acompanhamento feito varia. Os pacientes externos vão mensalmente, os semi-extensivos semanalmente e os intensivos recebem consultas diárias.

Desde 2007, os hospitais, que atendem 32 mil doentes mentais pelo SUS por ano, ficam com 36,6% da verba total destinada à saúde mental e o CAPS recebe 63,4%. Mas o dinheiro é pouco. Isso porque o Ministério da Saúde previa que com o fechamento dos leitos psiquiátricos, tal verba seria remanejada para os serviços extra-hospitalares. Mas estudos mostram o contrário. Em 1995, 5% do orçamento total da saúde era destinado para área mental. Atualmente, a taxa caiu para 2,5%, que incluem também os gastos com medicação. "Ocorreu um desinvestimento. A verba é pouca frente a necessidade de criar uma rede de apoio nova", sintetiza o psiquiatra Sérgio Tamai.

Existem 1.394 unidades espalhadas pelo Brasil, sendo que apenas 40 delas são capazes de internar pacientes em crise. Estima-se que no país haja 17 milhões de pessoas com algum transtorno mental grave, que inclui esquizofrenia, depressão, transtorno bipolar e transtorno obsessivo-compulsivo. Entretanto, muitos ficam sem assistência. Segundo o Ministério da Saúde,  os CAPS atendem um total de 360 mil pessoas por ano.

Segundo o psiquiatra Spadini, na maioria dos Centros de Atenção Psicossocial não é possível colocar um paciente intensivo (aquele que precisa de acompanhamento diário), porque eles não fazem esse serviço ou porque todas as vagas já estão preenchidas. "Não há recursos. O problema é que às vezes você dá alta do hospital psiquiátrico para um paciente grave contando que vai ter um suporte diário no CAPS, e não tem. Então, acaba voltando para o hospital", enfatiza Spadini, psiquiatra do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Outra função do CAPS seria a coordenação do Programa de Saúde Familiar, que consiste em visitas aos lares de pacientes e aplicação de injeções de depósitos. Essas são válidas para um mês e utilizadas em pacientes que se recusam a aceitar medicação. "Mas não são todos os CAPS que conseguem fazer isso", alega Spadini.

O psiquiatra Sérgio Tamai concorda. "Os CAPS têm muitas atribuições e não conseguem dar conta de tudo. No Brasil temos um buraco ambulatorial, pacientes e familiares não conseguem tratamento", relata. O médico ainda se queixa da falta de capacitação de médicos e enfermeiros especializados em psiquiatria no país.

"Mesmo assim, acho úteis tais medidas alternativas à internação. Quanto mais forem aprimoradas, menos internações ocorrerão e isso será ótimo", pondera Spadini. Isso porque existem pacientes que estão se tratando graças aos CAPS.

É o caso de Marco Antônio Hanser, 50 anos, frequentador diário do CAPS situado na rua Itapeva, em São Paulo. Sua rotina se inicia às 8h30 com a chamada Roda do Bom Dia. Trata-se de uma dinâmica em que os pacientes contam como estão se sentindo. Depois, eles são encaminhados para atividades específicas. Marco faz oficinas de mosaico e origami. Após o almoço, que é elaborado por uma nutricionista, fica livre para as atividades de lazer. Gosta de jogar dominó, participa de campeonatos internos e da organização de festas. Pode, ainda, ser atendido por dentistas e professores de educação física.

Ele mora com a esposa, que vai buscá-lo todos os dias às 16 horas. Marco recebe um auxílio-doença do governo e vende caixinhas artesanais de madeira para complementar a renda familiar. Apesar de sonhar com o dia de sua cura, conta que gosta muito do CAPS, dos funcionários e dos pacientes com quem fez amizade.

OUTRAS ALTERNATIVAS
Como estratégia para estimular a assistência extra-hospitalar, o governo federal criou em 2003 o Programa De Volta Para Casa, que atende pessoas com transtornos mentais, egressas de internações prolongadas (dois anos ou mais), bem como os habitantes das residências terapêuticas. O valor pago para cada beneficiário é de R$ 240,00 mensais, pelo período de um ano, que pode ser estendido até que a pessoa esteja apta a se reintegrar completamente à sociedade. Embora na implantação do programa o governo tenha estimado que até o ano de 2007 cerca de 11 mil pessoas seriam beneficiadas pelo programa, até o primeiro semestre de 2009 apenas 3.346 pessoas foram atendidas, cerca de 30% do valor estimado inicialmente.

Em outras regiões do Brasil os tratamentos ditos alternativos são mais complicados. De acordo com Rosa Garcia, membro da diretoria da Associação Brasileira de Psiquiatria, no nordeste a lei dificulta o tratamento. "Para as regiões mais pobres a lei é quase utópica. Você tem de conviver de perto com a doença, precisa trabalhar, dar assistência ao enfermo e ainda levá-lo para acompanhamentos, sendo que usando transporte público você gasta no mínimo duas horas", explica Rosa Garcia.

Mas os impasses no tratamento não se restringem ao nordeste. O Hospital Dia, de Pouso Alegre, Minas Gerais, por exemplo, leva cerca de 200 dias para atender o paciente, segundo Rosa Garcia. "Se os CAPS conseguissem abarcar a demanda seria bom, mas o fato é que a rede substitutiva não consegue promover a substituição. Então, é como se a lei não desse assistência para o paciente", atesta.

De acordo com dados do Ministério da Saúde, a cobertura dos CAPS é avaliada como boa quando existem 0,7 unidades para cada 100 mil habitantes. Os índices atualizados mostram que nove estados brasileiros mais o Distrito Federal possuem uma rede de assistência psicossocial tida como regular ou crítica. Já a cobertura a nível nacional é avaliada como boa.

É assim que, aos poucos, os cabeças de tulipa vêm recebendo tratamentos mais dignos e satisfatórios. Mas ainda há muito a ser feito pela saúde mental brasileira no sentido de ampliar a melhorar o acesso aos tratamentos, regando flores ainda sedentas, que precisam de jardineiros.


(Matéria publicada em novembro de 2009 na revista Esquinas, órgão laboratorial da Faculdade Cásper Líbero. Para ver o conteúdo original, clique aqui)

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